Opinião | "The Day of the Jackal": espionagem em estado de arte
A reinvenção do clássico com classe, sofisticação e frieza

- Atenção: o texto que se segue pode conter spoilers! -
A série britânica The Day of the Jackal (2024) é uma reinvenção sofisticada do clássico de espionagem de Frederick Forsyth, transformada agora num thriller televisivo de alto nível que alia estética, precisão narrativa e uma profunda consciência do tempo presente. Ao optar pelo formato seriado, esta adaptação recupera o fôlego psicológico da obra literária, permitindo maior profundidade narrativa e uma abordagem contemporânea à espionagem global.
Publicado em 1971, The Day of the Jackal tornou-se um marco do thriller político moderno. O romance, construído com rigor quase jornalístico, narra a tentativa fictícia de assassinato do presidente francês Charles de Gaulle por um assassino contratado por uma organização extremista. Em 1973, Fred Zinnemann realizou a primeira adaptação cinematográfica, protagonizada por Edward Fox, aclamada pela sua precisão narrativa e suspense meticuloso. Em 1997, surgiu uma versão alternativa intitulada The Jackal, com Bruce Willis e Richard Gere, que reinventou a história num registo mais comercial e centrado na ação. A versão de 2024, produzida para televisão, honra o legado literário e cinematográfico, mas ousa reinventar com estilo e inteligência.
A série é conduzida por uma equipa de realizadores experientes — Brian Kirk, Anthony Philipson, Paul Wilmshurst e Anu Menon — que imprimem à narrativa uma linguagem visual contida, elegante e profundamente atmosférica. A realização privilegia o silêncio, os gestos mínimos e os olhares calculados, criando uma tensão que se constrói mais pela sugestão do que pela exposição. A câmara move-se com precisão, quase sempre ao serviço da psicologia das personagens, evitando o excesso e apostando numa estética de espionagem clássica com fôlego contemporâneo.
A produção executiva é liderada por Gareth Neame (Downton Abbey), Nigel Marchant, Sue Naegle, Marianne Buckland, Ronan Bennett (também criador da série), Eddie Redmayne e Lashana Lynch. O investimento na qualidade técnica é evidente em cada episódio, desde os cenários reais em capitais europeias até à escolha de figurinos e adereços que reforçam a autenticidade da intriga.
A banda sonora original, composta por Volker Bertelmann (vencedor do Óscar por All Quiet on the Western Front), é um dos grandes trunfos da série. A música acompanha a narrativa com subtileza e tensão, sem se sobrepor à ação. O tema do genérico, "This Is Who I Am", interpretado por Celeste e produzido pelo colectivo Beach Noise, estabelece uma identidade sonora cinematográfica e sofisticada, evocando os clássicos temas da saga Bond com uma elegância soul contemporânea.
Além da composição original, a série distingue-se por uma curadoria musical refinada que reforça o tom emocional e psicológico da narrativa. Ao longo dos episódios, são usadas faixas como "Everything In Its Right Place" dos Radiohead, "Raise Hell" de Brandi Carlile, "Friend or Foe" de Jordan Rakei e "Devil’s Resting Place" de Laura Marling, que pontuam momentos de introspeção e viragem dramática. A tensão sensual e o mistério são amplificados por temas como "Paradise Circus" (Massive Attack, remix de Gui Boratto) e "Rid of Me" de Nilüfer Yanya. Há também espaço para ironia e vulnerabilidade com "Trust In Me" de Etta James, "You Do Something To Me" de Bing Crosby e a versão coral de "Underneath It All" por Scala & Kolacny Brothers. Um dos momentos mais íntimos da série é acompanhado por "Nunca vas a comprender" de Rita Payés, enquanto "Wicked Game" na versão ao vivo de Wolf Alice marca uma cena de confronto emocional. Esta seleção musical não só enriquece a atmosfera da série como funciona como comentário subtil à ação e às motivações das personagens, tornando a banda sonora um dos elementos mais sofisticados da produção.











A fotografia, assinada por Ruairí O’Brien e Nick Dance, é meticulosa e expressiva. A paleta cromática varia conforme a cidade e o estado emocional das personagens: tons frios e azulados em Londres e Berlim, luz mediterrânica em Cádis, sombras densas e contrastes dramáticos no teatro de Berlim. A composição dos planos reforça a sensação de vigilância constante, com enquadramentos que sugerem isolamento, duplicidade e ameaça.
Um dos elementos mais distintivos da série é o uso da arquitectura como extensão da narrativa. Os espaços não são meros cenários, mas entidades vivas que moldam o comportamento das personagens e amplificam a tensão. A casa em Cádis, apresentada na história como refúgio do Jackal, foi filmada em Rabac, na Croácia, com decoração inspirada na estética mediterrânica. O teatro em Berlim, onde decorre uma das cenas-chave — uma tentativa de assassinato — foi filmado em Viena, no edifício Strabag House, e tratado visualmente como um labirinto operático de tensão e elegância. Paris e Londres completam o mapa da intriga, oferecendo o contraste entre tradição e modernidade.
O guarda-roupa, desenhado por Natalie Humphries, é uma extensão da psicologia das personagens. Eddie Redmayne veste peças de corte clássico da Savile Row, com fatos da Gieves & Hawkes, casacos da Burberry, óculos da Cutler and Gross, relógios Omega Seamaster e malas da Globe-Trotter — tudo reforçando a frieza aristocrática e o anonimato sofisticado do Jackal. Lashana Lynch alterna entre funcionalidade e elegância, com peças Stella McCartney, blusões da Belstaff e botas da Church’s, sublinhando a sua presença operacional e emocional.
No centro da série brilham duas interpretações absolutamente magnéticas. Eddie Redmayne encarna Alex Duggan, conhecido como “The Jackal”, um assassino britânico de elite, ex-militar das forças especiais, com uma contenção expressiva que transforma cada silêncio em ameaça. A sua performance é marcada por uma neutralidade emocional inquietante, que confere à personagem uma presença quase espectral — calculada, fria, mas estranhamente humana. Ao seu lado, Lashana Lynch dá corpo a Bianca Pullman, agente do MI6, especialista em armamento, numa interpretação de força e vulnerabilidade que equilibra o duelo psicológico da narrativa. Lynch imprime à personagem uma intensidade emocional rara, combinando inteligência operacional com uma dimensão íntima que a torna inesquecível. A química entre os dois é tensa, elegante e profundamente cinematográfica.
A grande surpresa do elenco é Úrsula Corberó, conhecida por La Casa de Papel, que interpreta Nuria, a esposa espanhola de Jackal, que o conhece sob o nome falso “Charles Calthrop” e mãe do seu filho, Carlitos. A sua presença cresce de forma subtil ao longo da temporada, culminando num cliffhanger emocional no último episódio que promete colocá-la no centro da intriga no segundo capítulo da série. Chukwudi Iwuji dá vida a Osita Halcrow, superior direto de Bianca e figura sénior no MI6, enquanto Khalid Abdalla interpreta Ulle Dag Charles, um bilionário e ativista que se torna alvo do Jackal. O elenco é ainda reforçado por nomes como Lia Williams, Eleanor Matsuura, Sule Rimi, Jonjo O’Neill, Ben Hall, Charles Dance e Jon Arias, que contribuem para a escala internacional e a densidade política da conspiração.
The Day of the Jackal é uma reposição de classe. A realização precisa, a música sofisticada, o guarda-roupa meticuloso e a inclusão da arquitectura como elemento narrativo convergem para uma obra que não tenta agradar a todos, mas recompensa quem aprecia suspense refinado e personagens esculpidas no silêncio. É uma adaptação que respeita o legado, mas ousa reinventar — com estilo, inteligência e uma assinatura britânica inconfundível. A confirmação da renovação para uma segunda temporada reforça o impacto da série, que se tornou rapidamente uma das produções mais aguardadas do género, com o público e a crítica ansiosos por acompanhar o próximo capítulo desta intriga internacional.
Imagens: Divulgação
ana sofia santos: agirlonfilm@sapo.pt


